Viagem a Petrópolis
A narrativa de Clarice Lispector utiliza-se de sutilezas que dizem mais do que o aparente em uma primeira lida.
por Mônica Lopes*
Perdidos os filhos, o marido, o lar, os dentes; a vaga imagem de que fora uma mulher; o olhar nebuloso que insiste em lacrimejar, embora nem sempre esteja chorando; o sorriso que repousa nos lábios e o velho hábito de agradecer. Assim é Margarida, ou melhor, Mocinha, a protagonista do conto Viagem a Petrópolis, que parte para a morte da mesma forma como viveu: anônima, dormindo numa cama pequena e dura, em um quarto dos fundos de uma espaçosa casa, em Botafogo. A resignação diante do tempo e das mazelas. O vazio do presente e a retomada fragmentada do passado.
O que levaria Clarice Lispector, aos 14 anos, a escrever sobre uma velha sequinha, doce e obstinada que mora de favores numa casa em Botafogo? O escritor Julio Cortázar já colocou: todo bom conto sempre terá um bom tema. Para Cortázar, um bom texto é aquele cuja significação não está na escolha do tema, mas o que está antes e depois dele. O que está antes é o escritor com sua carga de valores humanos e literários, com vontade de fazer uma obra que tenha sentido. O depois é o tratamento literário do tema.
A narrativa clariciana concentra significações que muitas vezes parecem diluir-se na vida simples e cotidiana na qual se inserem os seus personagens. Os seus textos estão determinados pela rotina, apresentando situações comuns aos desafios cotidianos: uma dona de casa envolvida em afazeres domésticos, Amor (da coletânea Laços de Família); uma criança sentada na escada à espera de alguém que compartilhe a sua infância, Tentação (A Legião Estrangeira); uma velhinha que vive de favores em uma casa de classe média alta, Viagem a Petrópolis.
Há, contudo, sempre algo de extraordinário no fazer literário da autora. Por trás de ações costumeiras, faz recortes da vida e registra instantes significativos dos seres humanos, partindo de uma experiência apreendida pelo olhar de si e recriada pela linguagem. Fatos banais transformam-se em uma revelação - epifania - capaz de despertar no leitor o desejo de saber sobre a própria existência, concebendo-a enquanto experiência paradoxal, dentro de uma temporalidade múltipla, longe da lógica da razão e próxima dos sentidos, das sensações.
O conto Viagem a Petrópolis apresenta, nos dois primeiros parágrafos, uma série de informações descritivas sobre Mocinha, a protagonista da história, o que para um leitor desavisado poderia implicar certo esvaziamento do enredo, como se não tivesse muito que dizer; como se a história estivesse predestinada a uma circularidade, afastando-se do desenvolvimento de uma ação, procedimento a que um texto narrativo se propõe. Segundo o escritor Affonso Romano Sant'Anna, "Os contos de Clarice seriam momentos epifânicos (...) numa leitura apressada poderia levar o leitor a pensar que em seus contos não acontece nada". Conheça Mocinha:
"Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. (...) O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por um tênue veludo branco."
De acordo com Tizvetan Todorov, filósofo, a narrativa não está limitada a uma sucessão de fatos, pois nem sempre uma sequência cronológica produz uma verdade. E, ao tomar como parâmetro uma breve história de Boccaccio, que gira em torno de um triângulo amoroso, pontua: "Tanto a descrição quanto a narrativa pressupõem temporalidade, mas a temporalidade de natureza diferente. A descrição inicial situava-se no tempo, ma esse temo era contínuo, ao passo que as mudanças, próprias da narrativa, recortam o tempo em unidades descontínuas; o tempo, pura duração, opões-se ao tempo dos acontecimentos. Só a descrição não basta para criar uma narrativa, mas não exclui a descrição".
Para o autor, há dois princípios fundamentais em toda e qualquer narrativa: o princípio de sucessão e o de transformação. As mudanças ou transformações, próprias da narrativa, recortam o tempo em unidades descontínuas. Pelo princípio da sucessão, entende-se o encadeamento de unidades descontínuas. Do princípio da transformação, depreende-se que a natureza das transformações é variada, sendo que seu paradigma é a negação ou oposição (passagem de A para não-A). Em síntese, a relação entre as unidades ou elementos da história é a de sucessão e a de transformação. Todorov defende que a estrutura da narrativa aparece tanto nos textos literários, pesquisados por ele, quanto em outros sistemas simbólicos.
Narrador empático
O texto clariciano mantém uma narrativa em primeira e terceira pessoas, característica comum nas narrativas tradicionais, mas utiliza-se do fluxo de consciência que é o rompimento dos limites de espaço e de tempo. Pequenos fatos exteriores provocam uma longa viagem abstrata das ideias, sem se basear numa estrutura sequencial da narração. Ela faz as personagens viverem o processo epifânico. Em outras palavras, diante de ocorrências mínimas, a personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ela mesma não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam.
A escritora adolescente já apresenta um modo de narrar que vai caracterizar a sua trajetória literária: um narrador onipresente que nutre pela personagem uma empatia, trazendo à cena um ser desimportante que parece desconhecer a sua condição de desamparo e solidão. Em Viagem a Petrópolis, evidencia-se a existência de uma senhora à qual não se atribui idade, talvez por querer deixar a critério do leitor, talvez por ser a própria autora incapaz de determinar a idade em que se anuncia a decrepitude humana. Mocinha que vivia de favores em casa de pessoas com as quais não estabelecia laço afetivo algum, encarava a sua existência dentro de uma zona de conforto, alheia a tudo que a colocava em condições subumanas:
"Sua vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de Botafogo um dia surpreendeu-se de tê-la em casa há tanto tempo, e achou que assim já era demais."
O narrador, apropriando-se do discurso indireto livre, ao invés de contextualizar as vivências anteriores da protagonista, capazes de elucidar, por exemplo, as razões pelas quais vivia em condição de mendicância, ocupa-se em delinear as suas vivências interiores. Mergulha nos pensamentos da protagonista e desvela os contrastes que formam a sua essência: "velha - Mocinha; doce - obstinada; olhos sujos - expectantes; olhos lacrimejantes - sorriso permanente". A dialética que compreende o universo de Mocinha parece acentuar as informações rasas sobre si, mas que o narrador privilegia na intenção de conduzir o leitor a trilhar o grafo das pegadas de uma escritura que sugere mais do que diz, ou que diz o indizível.
Clarice, mesmo relatando o ir e vir de Mocinha, em seus constantes passeios pelas ruas do Rio de Janeiro, não caracteriza o engatar da narração concebida por Todorov. Essas ações repetitivas não implicam mudanças factuais próprias da narrativa, mas conduzem sutilmente para uma transformação da história. A personagem não se dilui no cenário textual; ela o próprio texto, a própria trama. A autora propõe a repetição como uma forma de compreensão do que pretende divulgar e do que pretende esconder. É um processo instintivo que obriga o leitor a sair da constituição frasal, da semântica simples e partir para a contextualização do que é dito e do que se quer dizer dentro da estrutura geral da sua ficção. Uma leitura de Clarice Lispector implica antes ater-se aos sentidos edificados na sua escritura, do que apurar a sua sintaxe, aparentemente desconexa.
Dessa forma, a autora tece, nas malhas das letras subjetivas do seu texto, um fazer literário que se afasta de uma ordem hierárquica. Mocinha, que é parca de palavras, tem no narrador onipresente a possibilidade de existência. O processo de transformação dá-se pela composição da personagem. Mocinha tem o hábito de passear pelas ruas do Rio de Janeiro para conhecer a cidade o que, estranhamente, faz sem nenhum atropelo. Entretanto, "Levantava-se de madrugada (...) disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo". Poder-se-ia então pensar nas impossibilidades de uma senhora que parecia não ter mais o quê desvendar, já que fora mãe e esposa; sem mais ter de quem cuidar e a quem obedecer:
"Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por uma tênue de veludo branco."
O que mais lhe restava? A vida, impondo-se até mesmo aos que já se encontram fragilizados. A procura da cidade ainda desconhecida poderia significar uma tentativa de desalienação, mesmo que inconsciente, dessa velha que, confinada ao esquecimento, tem nessas saídas a possibilidade de sobreviver à ausência de afetividade. Na casa, as pessoas não se davam conta da sua presença, a não ser quando, acidentalmente, esbarravam nela: "E quando passavam atarefados pela velha ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha no ombro: 'olha!'".
Além disso, quando o narrador conclui o pensamento de Mocinha, ou o adivinha: "Bastava, aliás, sentar-se num banco de uma praça e já se via o Rio de Janeiro" , afastasse a ideia de que Mocinha era movida pelo desejo de conhecer a Cidade Maravilhosa. Ao contrário do flanêur, que transita prazerosamente por entre a multidão; o lugar que lhe cabia eram as praças, espaços públicos destinados àqueles que não têm para aonde ir, nem para aonde retornar. Sair lépida para passear, antes mesmo que o dia já tivesse amanhecido, é uma denúncia de seu estado de agregada. Assim, é preciso ler o que está nas entrelinhas.
Passeando pelas ruas do Rio de Janeiro, ou sentada em um banco de praça, Mocinha estaria compondo a paisagem das grandes cidades de seres desabrigados, de passantes sem direção, vivendo o drama das incertezas e da contradição humana. Incorporando-a a essas representações da sociedade, a autora, paradoxalmente, traça o caminho para a percepção do leitor que começa a percorrer com a personagem o seu labirinto. Em verdade, o leitor é induzido a se inscrever no discurso narrativo, percorrendo os caminhos misteriosos da condição humana.
A trama de mocinha
Segundo Ricardo Piglia, o que faz a narração de uma história ultrapassar o previsível e o convencional é justamente a capacidade que tem o contista de escrever duas histórias: a visível e a secreta. Piglia afirma que o conto moderno é o que melhor utiliza a história secreta, pois é também o que mais se aproxima da linguagem poética. Em vez de anunciar a existência de duas histórias distintas, como no conto clássico, passa a contá-las como se fosse uma só. Assim, o ato de narrar induz o leitor a adentrar uma teia que é tecida no emaranhado de histórias que ora se velam, ora se desvelam.
A personagem é concebida como um estorvo. Mocinha vista a olho nu, poderia arrancar dos mais céticos um sorriso, mas ao chegar mais perto do espelho que se evitava, ocorria o mal estar. Uma das jovens da casa, por exemplo, não conseguia suportar o sorriso da personagem, que ela sabia ser um rito inofensivo. Diante do incômodo que se instaurava, Mocinha deveria ser levada para longe da casa: "E logo que alguém cogitou de mandá-la morar em Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada do que uma velha poderia provocar".
É aqui que a narrativa, no dizer de Todorov, engata e incorpora dois dos elementos elencados pelo autor: a degradação de uma situação (Mocinha afasta-se da sua zona de conforto); o desequilíbrio constatado (o "novo passeio" desestabiliza a personagem). A iminência de sofrer um deslocamento geográfico (Rio - Petrópolis) termina interferindo no estado de espírito de Mocinha. A personagem teme escapar da sua rotina, mecanicizada e aparentemente confortável.
O leitor é induzido a inscrever-se no discurso narrativo, de modo a percorrer os caminhos misteriosos da condição humana apontados por Clarice.
Por que Mocinha não dormiu na noite anterior? O caráter epifânico neste conto não obedece a uma ruptura súbita, como na maioria dos contos de Clarice Lispector. Aqui a linguagem molda-se às condições físicas e psicológicas da personagem fragilizada pela idade, pela perda de memória, pelo discernimento que lhe escapa. O processo de descoberta dá-se pela proposta de um "novo passeio": a viagem a Petrópolis. As lembranças remotas do passado iniciam-se pelos filhos que perdera em situação trágica. Filhos os quais não sabia mais terem existido. Os cabelos e as roupas do filho, a contrariedade com Maria Rosa; a saudade, o arrependimento; a morte sendo justificada: "se tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí mesmo que morria atropelado e servindo de justificativa: se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar". Em seguida, o marido que nos aparece de forma quase isolada, como se não fizesse parte do enredo amoroso que a as mães constroem com os filhos. Mocinha parece estranhar pensamentos e sensações que há muito não lhe ocorriam.
"Passou a noite falando, às vezes alto. A excitação do passeio prometido e a mudança de vida, de repente aclaravam-lhe algumas ideias. Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão - se ele tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e como ela gritara com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar. E lembrou-se do marido. Só lembrava do marido em mangas de camisa. Mas não era possível, estava certa de que ele ia à repartição de paletó, sem falar que não poderia ir ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a cama era dura."
Esse flash de consciência (revelação) ao mesmo tempo em que recupera a sua identidade perdida, exerce sobre a personagem a sensação de medo, de angústia; o mal estar que induz à manutenção do estado aprisionado, uma vez que o indivíduo se fragiliza diante da hegemonia social. Nádia Gotlib fala que James Joyce concebe a epifania como uma espécie de grau de apreensão do objeto que poderia ser identificada com o objeto do conto, enquanto forma de representação da realidade; em suas palavras, "É uma manifestação espiritual súbita, em que o objeto se desvenda ao sujeito". Logo, entender o caráter epifânico dos contos de Clarice Lispector constitui tarefa imprescindível para a compreensão de sua obra, uma vez que o importante se revela na dinâmica interna das personagens, em um fluxo de consciência que afasta definições e prioriza o sentido das coisas.
Por que será que acompanhamos e vivemos a história de Mocinha? Talvez porque a literatura seja uma utopia realizável, realiza-se nesse conto, realiza-se em Clarice Lispector. De repente, o fio condutor dessa história é o paletó do marido que Mocinha não consegue achar em suas lembranças fragmentadas. O paletó é a metáfora da racionalidade, é a chave que falta para que se desvende o mistério. A protagonista passa uma noite em agonia; a imagem do marido torna-lhe a aparecer:
"Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se estava de paletó ou em mangas de camisa. Deitou-se de novo coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu."
Esse estado de inquietude da protagonista é a tensão necessária ao conto que Cortázar defende como imprescindível e que é concebida na literatura clariciana por meio da epifania que, neste conto, mostra-se tênue, quase imperceptível. Clarice Lispector retarda o destino das suas personagens, mesmo se tratando do gênero conto, caracterizado pela brevidade; pois não é para se chegar ao final que o conto foi escrito, e sim para, através da narrativa, concretizar o mistério da experiência. Mas Mocinha caminha inevitavelmente para um desfecho.
No carro no qual está sendo levada para Petrópolis, A palavra de mocinha é o silêncio que se opõe ao contentamento dos jovens e aos seus risos ruidosos. As imagens sobrepostas pela velocidade evidenciam a relação entre significado e significante, mesmo que os signos revelem-se aparentemente desvinculados: "Passaram por um cemitério, um armazém, árvore, duas mulheres, um soldado, gato! Letras - tudo engolido pela velocidade". Nada em Clarice é despretensioso. Observa-se que as imagens vão sendo registradas de acordo com a velocidade do carro e a percepção de Mocinha e, ao final, são engolidas pela velocidade, ou pelo seu desmaio: "Quando Mocinha acordou não sabia mais aonde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era estreita e perigosa".
Por outro lado, essas palavras podem semanticamente inserir uma nova mensagem. Cemitério e gato, por exemplo, são dois signos sensíveis e inteligíveis que carregam um conteúdo que os fortalecem: a ideia da morte representada pelo cemitério e a de presságio sugerida pelo gato. Clarice Lispector estabelece a relação e inter-relação entre esses elementos do texto. Não se pode compreender a sintaxe da autora sem relacioná-la ao seu universo literário que sugere a possibilidade infinita de escrever e reescrever. É nesse jogo de mostrar e esconder que a autora incita no leitor a necessidade de continuar viajando com a personagem. Empurra-o no labirinto para achar a saída, mas os caminhos abrem-se em curvas estreitas, em alinhavos que insistimos em coser, mas que se partem continuamente.
Ao mesmo tempo em que a protagonista encontra o seu fio condutor, o paletó que sempre estivera pendurado, o desdobramento de suas lembranças volta a desemborcar em informações pouco significativas para o desfecho. Em verdade, Mocinha apresenta uma memória mantida por registros de imagens desconexas que lhe aparecem como algo jamais vivido: marido, filhos e todos os elos afetivos que um dia tivera. Essas oscilações acabam por acentuar a sua marginalização, isolamento e senilidade: "lembrou-se do nome da amiga de Maria Rosa, daquela que morava defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até era aleijada".
Em Petrópolis, Mocinha fora recebida em casa da cunhada alemã, como seria recebida em qualquer lugar: como indigente. Uma velha sequinha, doce e obstinada provocava também na estrangeira um incômodo. Poderia se tratar de uma velha maquiavélica, oportunista, tentando roubar-lhe a casa, "aconteciam coisas assim todos os dias, bastava abrir um jornal e ver que acontecia". Mocinha, que se sentia fraca, desejava tomar café, mas ninguém lhe oferecia.
"O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para o outro, mas ela contaria tudo. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café."
A personagem, por um instante, sugere tomar conhecimento do seu esmagamento social, vendo-se como joguete nas mãos da sociedade. Mas mantém-se sentada e calada, esperando a decisão do dono da casa. Clarice estabelece o paradoxo entre o eu e o outro: Arnaldo, ladeado pelas duas mulheres. De um lado, sua mulher esticada e vermelha, do outro, uma velha murcha e escura com uma sucessão de peles penduradas nos ombros. Espelhos avessos; o velho e o novo, o claro o escuro, força e fragilidade, vida e morte. O discurso direto faz-se presente nesse momento do conto que antecede ao desfecho, pois o narrador distancia-se da personagem, assumindo a posição unicamente de observador. Arnaldo recusa o que lhe parece inútil e Mocinha recolhe-se em sua insignificância. A velhice de Mocinha é a sua sentença; ela está fora de lugar no mundo.
"Volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz que casa de Arnaldo não é asilo viu? Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu! Mocinha pegou o dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia sentar para comer, Mocinha reapareceu: - Obrigado, Deus lhe ajude."
Mocinha desvia-se da estação de trem e segue passeando pela estrada de Petrópolis que é muito bonita. Lembrava sem saudades dos filhos e do marido e, por um instante, recobrou-se de que já tinha sido uma mulher: "Quando era ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e cabelos compridos.". Mocinha parece desprovida de intencionalidades, mas segue caminhando pela estrada que subia muito. Há uma convergência entre os elementos da natureza e ela própria parece fundir-se ao lugar que se revela paradisíaco: "O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde". Mais uma vez, a autora ressalta os lugares alhures pelos quais a protagonista podia transitar e nos quais podia permanecer: "Então como estava muito cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu". Dessa forma, Mocinha sai definitivamente de cena, completando o ciclo da vida de nascer, viver e morrer.
Clarice Lispector propõe uma incursão literária, pois a literatura pode nos revelar o não-dito, dar voz aos que se encontram silenciados, levar-nos a refletir sobre as formas várias de relação interpessoal. No conto Viagem a Petrópolis, a escritora traz à tona a situação dramática dos que vivem dentro de uma estrutura social na qual se desconhece a afetividade e se negam as fragilidades humanas. Em uma sutileza de linguagem que sugere mais do que diz, ou que diz o indizível, Clarice induz e conduz o leitor a adentrar um mundo de seres desimportantes, esmagados por uma sociedade que despreza a sua essência.
*Mônica Lopes é Mestranda do Curso de Pós-graduação de Literatura e Cultura do Instituto de Letras da UFBA.
Saiba mais:
- CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. Id: Bvalise de Cronópio. Tradução Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 147-163.
- GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. Ed. São Paulo: Ática, 1991.
- LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
- PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In. O laboratório do escritor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994.p. 37-41.
- SANT'ANNA, Affonso Romanno de. Análise Estrutural de Contos Brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1975.
- TODOROV, Tizvetan. "Os dois princípios da narrativa". In._ Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
Excelente análise!
ResponderExcluirEste ,conto nos traz a uma reflexão, que seremos de nós quando a velhice chegar ,o único alívio e a morte,pois é triste viver como um.morto igual a vida de mocinha que teve seu alívio com sua morte
ResponderExcluir