"Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por uma tênue de veludo branco."
O que mais lhe restava? A vida, impondo-se até mesmo aos que já se encontram fragilizados. A procura da cidade ainda desconhecida poderia significar uma tentativa de desalienação, mesmo que inconsciente, dessa velha que, confinada ao esquecimento, tem nessas saídas a possibilidade de sobreviver à ausência de afetividade. Na casa, as pessoas não se davam conta da sua presença, a não ser quando, acidentalmente, esbarravam nela: "E quando passavam atarefados pela velha ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha no ombro: 'olha!'".
Além disso, quando o narrador conclui o pensamento de Mocinha, ou o adivinha: "Bastava, aliás, sentar-se num banco de uma praça e já se via o Rio de Janeiro" , afastasse a ideia de que Mocinha era movida pelo desejo de conhecer a Cidade Maravilhosa. Ao contrário do flanêur, que transita prazerosamente por entre a multidão; o lugar que lhe cabia eram as praças, espaços públicos destinados àqueles que não têm para aonde ir, nem para aonde retornar. Sair lépida para passear, antes mesmo que o dia já tivesse amanhecido, é uma denúncia de seu estado de agregada. Assim, é preciso ler o que está nas entrelinhas.
Passeando pelas ruas do Rio de Janeiro, ou sentada em um banco de praça, Mocinha estaria compondo a paisagem das grandes cidades de seres desabrigados, de passantes sem direção, vivendo o drama das incertezas e da contradição humana. Incorporando-a a essas representações da sociedade, a autora, paradoxalmente, traça o caminho para a percepção do leitor que começa a percorrer com a personagem o seu labirinto. Em verdade, o leitor é induzido a se inscrever no discurso narrativo, percorrendo os caminhos misteriosos da condição humana.
A trama de mocinha
Segundo Ricardo Piglia, o que faz a narração de uma história ultrapassar o previsível e o convencional é justamente a capacidade que tem o contista de escrever duas histórias: a visível e a secreta. Piglia afirma que o conto moderno é o que melhor utiliza a história secreta, pois é também o que mais se aproxima da linguagem poética. Em vez de anunciar a existência de duas histórias distintas, como no conto clássico, passa a contá-las como se fosse uma só. Assim, o ato de narrar induz o leitor a adentrar uma teia que é tecida no emaranhado de histórias que ora se velam, ora se desvelam.
A personagem é concebida como um estorvo. Mocinha vista a olho nu, poderia arrancar dos mais céticos um sorriso, mas ao chegar mais perto do espelho que se evitava, ocorria o mal estar. Uma das jovens da casa, por exemplo, não conseguia suportar o sorriso da personagem, que ela sabia ser um rito inofensivo. Diante do incômodo que se instaurava, Mocinha deveria ser levada para longe da casa: "E logo que alguém cogitou de mandá-la morar em Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada do que uma velha poderia provocar".
É aqui que a narrativa, no dizer de Todorov, engata e incorpora dois dos elementos elencados pelo autor: a degradação de uma situação (Mocinha afasta-se da sua zona de conforto); o desequilíbrio constatado (o "novo passeio" desestabiliza a personagem). A iminência de sofrer um deslocamento geográfico (Rio - Petrópolis) termina interferindo no estado de espírito de Mocinha. A personagem teme escapar da sua rotina, mecanicizada e aparentemente confortável.
O leitor é induzido a inscrever-se no discurso narrativo, de modo a percorrer os caminhos misteriosos da condição humana apontados por Clarice.
Por que Mocinha não dormiu na noite anterior? O caráter epifânico neste conto não obedece a uma ruptura súbita, como na maioria dos contos de Clarice Lispector. Aqui a linguagem molda-se às condições físicas e psicológicas da personagem fragilizada pela idade, pela perda de memória, pelo discernimento que lhe escapa. O processo de descoberta dá-se pela proposta de um "novo passeio": a viagem a Petrópolis. As lembranças remotas do passado iniciam-se pelos filhos que perdera em situação trágica. Filhos os quais não sabia mais terem existido. Os cabelos e as roupas do filho, a contrariedade com Maria Rosa; a saudade, o arrependimento; a morte sendo justificada: "se tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí mesmo que morria atropelado e servindo de justificativa: se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar". Em seguida, o marido que nos aparece de forma quase isolada, como se não fizesse parte do enredo amoroso que a as mães constroem com os filhos. Mocinha parece estranhar pensamentos e sensações que há muito não lhe ocorriam.
"Passou a noite falando, às vezes alto. A excitação do passeio prometido e a mudança de vida, de repente aclaravam-lhe algumas ideias. Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão - se ele tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e como ela gritara com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar. E lembrou-se do marido. Só lembrava do marido em mangas de camisa. Mas não era possível, estava certa de que ele ia à repartição de paletó, sem falar que não poderia ir ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a cama era dura."
Esse flash de consciência (revelação) ao mesmo tempo em que recupera a sua identidade perdida, exerce sobre a personagem a sensação de medo, de angústia; o mal estar que induz à manutenção do estado aprisionado, uma vez que o indivíduo se fragiliza diante da hegemonia social. Nádia Gotlib fala que James Joyce concebe a epifania como uma espécie de grau de apreensão do objeto que poderia ser identificada com o objeto do conto, enquanto forma de representação da realidade; em suas palavras, "É uma manifestação espiritual súbita, em que o objeto se desvenda ao sujeito". Logo, entender o caráter epifânico dos contos de Clarice Lispector constitui tarefa imprescindível para a compreensão de sua obra, uma vez que o importante se revela na dinâmica interna das personagens, em um fluxo de consciência que afasta definições e prioriza o sentido das coisas.
Por que será que acompanhamos e vivemos a história de Mocinha? Talvez porque a literatura seja uma utopia realizável, realiza-se nesse conto, realiza-se em Clarice Lispector. De repente, o fio condutor dessa história é o paletó do marido que Mocinha não consegue achar em suas lembranças fragmentadas. O paletó é a metáfora da racionalidade, é a chave que falta para que se desvende o mistério. A protagonista passa uma noite em agonia; a imagem do marido torna-lhe a aparecer:
"Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se estava de paletó ou em mangas de camisa. Deitou-se de novo coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu."
Esse estado de inquietude da protagonista é a tensão necessária ao conto que Cortázar defende como imprescindível e que é concebida na literatura clariciana por meio da epifania que, neste conto, mostra-se tênue, quase imperceptível. Clarice Lispector retarda o destino das suas personagens, mesmo se tratando do gênero conto, caracterizado pela brevidade; pois não é para se chegar ao final que o conto foi escrito, e sim para, através da narrativa, concretizar o mistério da experiência. Mas Mocinha caminha inevitavelmente para um desfecho.
No carro no qual está sendo levada para Petrópolis, A palavra de mocinha é o silêncio que se opõe ao contentamento dos jovens e aos seus risos ruidosos. As imagens sobrepostas pela velocidade evidenciam a relação entre significado e significante, mesmo que os signos revelem-se aparentemente desvinculados: "Passaram por um cemitério, um armazém, árvore, duas mulheres, um soldado, gato! Letras - tudo engolido pela velocidade". Nada em Clarice é despretensioso. Observa-se que as imagens vão sendo registradas de acordo com a velocidade do carro e a percepção de Mocinha e, ao final, são engolidas pela velocidade, ou pelo seu desmaio: "Quando Mocinha acordou não sabia mais aonde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era estreita e perigosa".

Por outro lado, essas palavras podem semanticamente inserir uma nova mensagem. Cemitério e gato, por exemplo, são dois signos sensíveis e inteligíveis que carregam um conteúdo que os fortalecem: a ideia da morte representada pelo cemitério e a de presságio sugerida pelo gato. Clarice Lispector estabelece a relação e inter-relação entre esses elementos do texto. Não se pode compreender a sintaxe da autora sem relacioná-la ao seu universo literário que sugere a possibilidade infinita de escrever e reescrever. É nesse jogo de mostrar e esconder que a autora incita no leitor a necessidade de continuar viajando com a personagem. Empurra-o no labirinto para achar a saída, mas os caminhos abrem-se em curvas estreitas, em alinhavos que insistimos em coser, mas que se partem continuamente.
Ao mesmo tempo em que a protagonista encontra o seu fio condutor, o paletó que sempre estivera pendurado, o desdobramento de suas lembranças volta a desemborcar em informações pouco significativas para o desfecho. Em verdade, Mocinha apresenta uma memória mantida por registros de imagens desconexas que lhe aparecem como algo jamais vivido: marido, filhos e todos os elos afetivos que um dia tivera. Essas oscilações acabam por acentuar a sua marginalização, isolamento e senilidade: "lembrou-se do nome da amiga de Maria Rosa, daquela que morava defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até era aleijada".
Em Petrópolis, Mocinha fora recebida em casa da cunhada alemã, como seria recebida em qualquer lugar: como indigente. Uma velha sequinha, doce e obstinada provocava também na estrangeira um incômodo. Poderia se tratar de uma velha maquiavélica, oportunista, tentando roubar-lhe a casa, "aconteciam coisas assim todos os dias, bastava abrir um jornal e ver que acontecia". Mocinha, que se sentia fraca, desejava tomar café, mas ninguém lhe oferecia.
"O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para o outro, mas ela contaria tudo. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café."
A personagem, por um instante, sugere tomar conhecimento do seu esmagamento social, vendo-se como joguete nas mãos da sociedade. Mas mantém-se sentada e calada, esperando a decisão do dono da casa. Clarice estabelece o paradoxo entre o eu e o outro: Arnaldo, ladeado pelas duas mulheres. De um lado, sua mulher esticada e vermelha, do outro, uma velha murcha e escura com uma sucessão de peles penduradas nos ombros. Espelhos avessos; o velho e o novo, o claro o escuro, força e fragilidade, vida e morte. O discurso direto faz-se presente nesse momento do conto que antecede ao desfecho, pois o narrador distancia-se da personagem, assumindo a posição unicamente de observador. Arnaldo recusa o que lhe parece inútil e Mocinha recolhe-se em sua insignificância. A velhice de Mocinha é a sua sentença; ela está fora de lugar no mundo.
"Volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz que casa de Arnaldo não é asilo viu? Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu! Mocinha pegou o dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia sentar para comer, Mocinha reapareceu: - Obrigado, Deus lhe ajude."
Mocinha desvia-se da estação de trem e segue passeando pela estrada de Petrópolis que é muito bonita. Lembrava sem saudades dos filhos e do marido e, por um instante, recobrou-se de que já tinha sido uma mulher: "Quando era ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e cabelos compridos.". Mocinha parece desprovida de intencionalidades, mas segue caminhando pela estrada que subia muito. Há uma convergência entre os elementos da natureza e ela própria parece fundir-se ao lugar que se revela paradisíaco: "O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde". Mais uma vez, a autora ressalta os lugares alhures pelos quais a protagonista podia transitar e nos quais podia permanecer: "Então como estava muito cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu". Dessa forma, Mocinha sai definitivamente de cena, completando o ciclo da vida de nascer, viver e morrer.
Clarice Lispector propõe uma incursão literária, pois a literatura pode nos revelar o não-dito, dar voz aos que se encontram silenciados, levar-nos a refletir sobre as formas várias de relação interpessoal. No conto Viagem a Petrópolis, a escritora traz à tona a situação dramática dos que vivem dentro de uma estrutura social na qual se desconhece a afetividade e se negam as fragilidades humanas. Em uma sutileza de linguagem que sugere mais do que diz, ou que diz o indizível, Clarice induz e conduz o leitor a adentrar um mundo de seres desimportantes, esmagados por uma sociedade que despreza a sua essência.
*Mônica Lopes é Mestranda do Curso de Pós-graduação de Literatura e Cultura do Instituto de Letras da UFBA.
Saiba mais:
- CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. Id: Bvalise de Cronópio. Tradução Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 147-163.
- GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. Ed. São Paulo: Ática, 1991.
- LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
- PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In. O laboratório do escritor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994.p. 37-41.
- SANT'ANNA, Affonso Romanno de. Análise Estrutural de Contos Brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1975.
- TODOROV, Tizvetan. "Os dois princípios da narrativa". In._ Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.